Por Emerson Martins
Acompanhando a atual disputa para a prefeitura de São Paulo, ouvi algumas pessoas queixarem-se do caráter “despolitizado” da campanha do candidato do PSOL, Guilherme Boulos, que tenta se descolar da pecha de radical e “invasor de terra” e se mostrar como alguém moderado e ordeiro. “Isso é parte de um processo de amadurecimento”, defendem apoiadores; “governar é muito mais complexo do que fazer oposição”, justificou o presidente do partido. Será mesmo inevitável que, diante da perspectiva da vitória, as forças se moderem? Com essa dúvida na cabeça fui pesquisar alguma experiência de campanha e administração local mais combativas, que pudessem servir de contraexemplo. E tinha um nome que não me saía da cabeça, que eu ouvi falar pelo meu pai: Maria Luíza Fontenele, a primeira prefeita do PT em Fortaleza. Meu pai era garçom e, certa vez, um executivo da IBM que acabara de retornar do Ceará disse que viu a cidade tomada pelo lixo, por conta de uma greve dos coletores. “E adivinha onde estava a prefeita? No meio da manifestação!”, bradava, indignado, enquanto meu pai ria, incrédulo.
A onda vermelha
As eleições municipais de 1985 foram um importante marco na redemocratização do país. Afinal era a primeira vez em 20 anos que haveria eleições diretas para prefeito nas capitais. Mas nenhuma delas foi tão marcante quanto a de Fortaleza.
Na capital cearense, o candidato da situação era o deputado Paes de Andrade, do PMDB, que contava não só com o apoio do prefeito, Barros Pinho, e do governador, Gonzaga Mota (ambos do PMDB), mas também da esquerda local: PCB, PCdoB e MR8. Já o candidato da oposição era Lúcio Alcântara, do PFL. Correndo por fora e fazendo oposição a ambos, estava a deputada estadual Maria Luíza Fontenele, pelo minúsculo Partido dos Trabalhadores (PT).
As pesquisas de intenção de voto davam larga vantagem ao candidato do PMDB. Já a candidata do PT aparecia com cerca de 10% dos votos, oscilando entre o terceiro e o quarto lugar [1]. Mas, na reta final da campanha, um fato decisivo iria deslocar a balança para o lado da petista.
Quinze dias antes do pleito, o sindicato dos motoristas do transporte coletivo de Fortaleza decreta greve por melhores salários. Iniciada no dia 3 de novembro, a greve paralisou completamente o serviço de transporte da capital [2]. Por dois dias a cidade foi tomada por confrontos entre os grevistas e a polícia. Dezenove pessoas foram presas, muitas foram espancadas e um motorista acabou morrendo. Maria Luíza se colocou lado a lado dos motoristas, entre pedradas e cassetetes. Sua postura diante da greve conquistou o apoio decisivo dos trabalhadores do transporte, que passaram a fazer campanha pela candidata junto à população. Aos poucos, uma onda vermelha foi tomando conta de Fortaleza, e os comícios da petista atraíam cada vez mais gente.
No dia 12 de novembro, a candidata realiza seu último comício. Batizado de “festa da virada”, o evento reuniu mais de 60 mil pessoas e contou com a participação de artistas famosos, como Belchior e Ednardo. A inesperada vitória de Maria Luiza no pleito de 15 de novembro foi descrita como uma façanha até pela imprensa reacionária: “Hábil e de bom nível político, [a candidata] soube aproveitar não apenas as contradições dos grupos políticos, como, de igual modo, acirrar os conflitos sociais”. Apesar disso, concluía o jornal, “a partir de agora, mesmo que somente assuma em janeiro, vai administrar conflitos, ao invés de acirrá-los”. (Editorial: Maria, o fenômeno. Diário do Nordeste. Fortaleza, 18 nov. 1985)
Ledo engano.
(Charge de Sinfrônio publicada n’O Povo. 02/01/1986)
A “Administração Popular”
“Fazer de Fortaleza a primeira cidade brasileira a dizer não ao capitalismo. Essa era a intenção de Maria Luíza Fontenele, ex-PT, ao assumir a prefeitura da capital cearense em 1986, aos 44 anos”.
Assim a Folha de S.Paulo descreveria, 14 anos depois, o programa de governo de Maria Luiza. Era a primeira vez que o PT governava uma capital e a expectativa era imensa. A situação financeira do município, no entanto, não dava margem a muita euforia.
Maria Luiza tomou posse em 1º de janeiro de 1986 e no final do mês a cidade já declararia falência. A sabotagem das elites locais e dos governos estadual e federal só deixaria a situação mais difícil. Em consequência, a máquina administrativa era constantemente paralisada por greves de servidores. A própria prefeita chegou a convocar os funcionários da Prefeitura à greve, a fim de pressionar o governo federal a liberar recursos para pagar os salários atrasados [3]. Um livro da época que faz um balanço da experiência da “Administração Popular” descreve assim o cenário:
“(…) as sucessivas greves acabaram destruindo a rotina de trabalho e dilapidando qualquer espírito de hierarquia; os processos demoravam a tramitar pois paravam num setor em greve ou dependiam de outro também em greve”.
A equipe de governo, no entanto, enxergava a situação por outra ótica:
“Internamente à equipe dirigente, foi se firmando uma concepção política que atribuía como prioridade a utilização da prefeitura como instrumento voltado à agitação e mobilização de massas contra a Nova República e de denúncia do sistema capitalista”.
Outro problema enfrentado pela gestão foi o déficit habitacional. Diante disso, a prefeitura incentivava a ocupação de terrenos públicos e privados. Em outra ocasião, Maria Luíza chegou a ser intimada a depor junto à Secretaria de Segurança Pública do estado por ter autorizado a distribuição na periferia de Fortaleza de uma cartilha que contava uma história em quadrinhos onde, no final, a população aparecia depredando os ônibus da cidade. A publicação foi criticada pelos empresários de ônibus da cidade, que afirmaram que seu conteúdo incitava a população a destruir os ônibus. A prefeita, contudo, reagiu, dizendo que a cartilha não ensinava à população a destruir os ônibus, mas aos empresários a prestarem melhores serviços.
Da parte da esquerda, a proposta de governar por meio de Conselhos Populares gerava críticas. O PCdoB acusava o governo da Administração Popular de usar os Conselhos Populares para enfraquecer as Associações de Moradores filiadas à Federação de Entidades de Bairros e Favelas de Fortaleza — que era dirigida pelos comunistas. A Câmara de Vereadores também reagiu, alegando que a prefeita buscava usurpar as atribuições do Legislativo.
Além disso, dentro do próprio partido os ânimos se acirravam e, em abril de 1988, a prefeita Maria Luiza e mais 19 militantes do seu grupo político foram expulsos do PT.
Encurralada, a Administração Popular encerra seu mandato decretando estado de calamidade pública na cidade. Em Carta Aberta à População, de 23 de dezembro de 1988, a gestão municipal denuncia o bloqueio de recursos por parte do governo federal e acusa as autoridades de cometer um crime contra a população de Fortaleza. Por fim, a Carta conclui: “vamos resistir, lutar e denunciar até que um dia surja uma nova ordem, surja o verdadeiro novo construído pelo povo”.
Epílogo
A história que eu acabo de contar não se deu num passado longínquo ou num país distante. Talvez por isso mesmo todos trataram de apagá-la da nossa memória coletiva. Nem mesmo o fato de ter sido a primeira mulher a governar uma capital brasileira foi suficiente para livrar do esquecimento a passagem de Maria Luíza pela prefeitura de Fortaleza.
Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo em novembro de 2000, a ex-prefeita fez uma autocrítica de sua gestão e disse que se pudesse voltar ao passado teria reforçado a organização popular: “Não que fosse acabar com os confrontos. Ao contrário, eles se intensificariam”. Por fim, ela critica o pragmatismo eleitoral da esquerda: “Muita gente acha que é uma utopia acreditar no combate ao capitalismo como uma saída. Achamos que é totalmente utópico e falso dizer que vai se administrar uma crise”. Candidatos para tal, no entanto, não faltam.
Notas
[1]
IBOPE | 10 ago. 1985 | 21 set. 1985 | 26 out. 1985 | 30 out. 1985 |
Paes de Andrade | 30,0 | 36,3 | 51,5 | 53,3 |
Lúcio Alcântara | — | 25,3 | 18,2 | 22,3 |
Maria Luiza | 10,3 | 12,0 | 13,3 | 07,3 |
Antônio Morais | 19,0 | 12,0 | 04,2 | 04,7 |
Citado na Dissertação de Mestrado de Aristides Braga Neto, “O Diário do Nordeste sobre a Administração Popular de Fortaleza: palavras de oposição”, 2011.
[2] “Os militantes do sindicato dos motoristas eram muito habilidosos em paralisar todos os ônibus que se aventuravam em sair às ruas, os quais tinham os pneus furtivamente esvaziados e os vidros quebrados” (Idem, p. 89)
[3] Idem, p. 149.
Referências
Braga Neto, Aristides. “O Diário do Nordeste sobre a Administração Popular de Fortaleza: palavras de oposição” (dissertação de mestrado). Fortaleza, Universidade Estadual do Ceará, 2011.
Calixto, Francisco José Silva. “Memória e narrativa : a história da educação da Administração Popular de Fortaleza (1986 – 1988)” (dissertação de mestrado). Fortaleza, Universidade Federal do Ceará, 2002.
Pinto, Valeska Peres. “Prefeitura de Fortaleza: administração popular, 1986/88”. Publicações Pólis. São Paulo, PÓLIS, n. 6, 1991.
Folha de S.Paulo, 12/11/2000, Ex-petista diz que tem “trauma” de gestão.
Fonte: Passapalavra.info